segunda-feira, 17 de março de 2008

SUGESTÃO DO DIA

Olá!

Sugiro VEEMENTEMENTE a leitura da matéria que está no link abaixo... Fala sobre um violinista que tocou no metrô. E a reação do público.

Clique aqui para ler a matéria.

Sugiro ainda que atentem para o link na lateral do site que diz: Leia essa matéria ao som da performance de Joshua Bell no metrô

Vou colocar aqui um trechinho para que se dêem conta da grandeza da mensagem...

"O poeta Billy Collins certa vez observou com humor que todos os bebês nascem conhecendo poesia, porque a batida do coração da mãe forma um iambo. E então, disse Collins, a vida começa a sufocar aos poucos a poesia que havia em nós. O que também pode se aplicar à música.

Não há um padrão étnico ou demográfico que possa diferenciar as pessoas que ficaram para ouvir Bell, ou as que deram dinheiro, da vasta maioria que seguiu o seu caminho apressado, sem tomar conhecimento do músico. Há brancos, negros e asiáticos, jovens e velhos, homens e mulheres, representados nos três grupos. Só existe um grupo demográfico cujo comportamento foi sempre consistente. Toda vez que uma criança passava, tentava parar para assistir. E, toda vez, o pai ou a mãe não deixava.

(...)


Para muitos de nós, a explosão da tecnologia, em vez de expandir, limitou de forma perversa nossa exposição a novas experiências. Cada vez mais, quem nos dá as notícias são fontes que pensam como já pensávamos. Com os iPods, ouvimos o que já conhecíamos; somos nós que programamos a lista do que vamos ouvir.

A canção que Calvin Myint estava ouvindo era Just Like Heaven, do conjunto de rock inglês The Cure. A canção, na verdade, é maravilhosa. Seu significado é um pouco opaco, e podem-se encontrar na internet muitíssimas tentativas esforçadas de desconstruí-la. Algumas são bem exageradas, mas outras são pertinentes. A canção fala de uma trágica desconexão emocional. Um homem encontrou a mulher dos seus sonhos mas não consegue exprimir a profundidade dos seus sentimentos antes de ela ir embora. A canção fala da incapacidade de vermos a beleza claramente exposta diante dos nossos olhos."
Não escrevo versos
Premonizo.
Sinto crianças, velhos
Sinto dores, amores, risos.
Traduzo
o que dizem os passarinhos
Eles, sim – vêem o mundo futuro
Com olhar alto, como uma teia tecida por mãos criadoras
E sabem ser criadores seu olhar, seu cantar e seu fazer ninhos.
Eu, não – vejo hoje o mundo
Cheio de pesar...

Há momentos em que sou cética:
Não acredito no que vejo
Mas no que vêem os passarinhos
Mundo amarelo e roxo, mundo clown, mundo sentido.

RENATA MAGALHÃES
Era uma menina
- Ricamininapobre
Quando ria, o céu brilhava alaranjado
- E óia que ria muito!
Depois sentiu a dor dos outros...
- Chorava rino!
- E óia que chorava muito...
Cantava o mar, cantava mal
- E óia que cantava muito!
Só tinha uma coisa que não saciava
- E óia que cumia muito!

De tanta fome, comeu o futuro.

RENATA MAGALHÃES

Representatividade

Eu...queria tanto encontrar
Uma pessoa como eu
A quem eu possa confessar
alguma coisa sobre mim

(“Eu” – Pato Fu)

Existe representatividade?

O que me representa no mundo?

Os programas de Tv, as revistas e jornais mostram o que eu quero ver , ler?

As propagandas trazem o que eu quero consumir?

Os nossos governantes nos representam?

Minha família, cidade e país de origem representam o que eu sou?

O que me representa no mundo?

Eu me represento? Ou apenas represento, cada dia hora e segundo, um papel diferente no tempo?

A palavra representa a coisa?

Já se sabe que não, pois o pai da ciência da língua1 faz tempo que assinalou a distância entre a palavra e a sua referência concreta.

Será então que as palavras representam nossos pensamentos e sentimentos?

Também não, pois como disse Pessoa2 "Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade."

Se cultura é linguagem e a linguagem é falha, por que insistimos então na cultura?

Talvez seja porque a cultura seja a expressão da visão que o homem tem do mundo, e assim, como toda visão é parcial, a linguagem filha desta, também o será.

E estamos, desde que nos tornamos humanidade, tentando alargar sempre esta visão.

Pois esta visão, esta cultura, esta linguagem não traz o todo do mundo, mas traz uma parte.

Parte esta que é real a partir do momento que é a visão de um homem.

Mas o homem não se contenta em ter essa visão sozinho.

Se se contenta é chamado de louco.

O homem quer que outros homens compartilhem essa visão.

Quando um homem tenta impor sua visão a outros homens ele é chamado de tirano.

Quando um homem tenta convencer da sua visão, outros homens, ele é chamado de filósofo.

Quando um homem tenta fazer sentir sua visão em outros homens ele é chamado de poeta.

E se o homem quer tanto que outros homens tenham sua visão deve ser porque ele precisa.

Se ele precisa então o homem deve ser mesmo um ser gregário.

O homem necessita sim de outros homens, mas não quaisquer homens, semelhantes.

O homem necessita se juntar a seus semelhantes.

E os semelhantes são aqueles que compartilham da mesma visão.

Resgata-se aqui a cultura.

Redime-se aqui a linguagem.

Será que é possível juntar várias visões de vários homens num mesmo espaço?

Afinal, isso é o que entendemos por democracia.

Há espaços geográficos que são divididos por diferentes homens.

Mas será que há espaços compartilhados por diferentes homens?

E se há espaços compartilhados por diferentes homens, há espaços para todas as vozes de suas visões?

É possível haver uma voz que se divida contendo todas as vozes?

Uma voz de todas as visões? Como uma boca para vários olhos?

É uma pena não estarmos mais na época dos manifestos, eles eram bonitos porque acreditavam ser a verdade, lindos nessa sua mentira sincera.

O que deveria era haver um espaço para todas as verdades.

O problema de criar um espaço é que se deixa de fora todo o resto.

Sabemos disso, mas não seria ótimo tentar, sonhar em abarcar num mesmo espaço todos os tipos homens?

Se este fosse um manifesto ele seria um manifesto antropocêntrico e antropofágico também, é claro, que não se deve andar para trás.

Mas antropocêntrico no sentido atual da antropologia, o qual as comunidades humanas e os homens não são piores ou melhores entre si, apenas diferentes.

Mais que isso. A psicanálise também já provou que esta história de Eu é construção. O Eu não é único é refeito a cada momento.

Então deveríamos ter um espaço para todos os Eus , os Eus que é você, os Eus que é ela, os Eus que é ele e todos os meus Eus.

Interação entre diferentes versões de uma pessoa e entre pessoas de diferentes versões.

Não é essa a função da liguagem?

Escrever e ser...

Ler e sentir não é função máxima da poesia?

Ler e ser afetado não é função máxima da prosa?

Ler e ser atingido não é função máxima da escrita?

Ler, ser atingido, ser afetado, sentir, mudar minha postura em relação ao mundo e o mundo – não é função máxima da comunicação?

Sim, a mudança, não por causa de um eu que quer mas de um nós que necessita.

Sim mudar, mas como consequência e não causa da escrita.

Ninguém escreve pra mudar, escreve por necessidade.

E, de novo, se a necessidade de um for a necessidade de muitos, muitos mudam a realidade para que esta abarque suas necessidades.

Por isso é preciso que os homens falem entre si quais necessidades têm.

É por isso que se escreve.

Não há realmente encontro entre homens, mas tentativas.

Esse espaço que aqui se apresenta é uma tentativa, mais uma tentativa... mas, como disse Clarice Lispector3, toda tentativa também é uma realização.



MELISSA CRUZ




1 As aulas de Ferdinand de Saussure foram reunidas por seus alunos e publicadas, em 1916, no livro Curso de Lingüística Geral (Cours de Linguistique Générale), livro esse que é considerado o fundador da lingüística moderna. Dentre seus ensinamentos Saussure assinala a arbitrariedade do signo , ou seja, sendo signo lingüístico = significante + significado ou, simplificando, signo = imagem acústica (som) + conceito, vê-se que não há nenhuma correlação entre o som e o sentido (entre significante e significado). Em suas palavras " (..) a idéia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à seqüência de m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf ("boi") tem por segnificante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs), do outro." ( na tradução de José Paulo Paes, Antônio Chelini e Izidoro Blikstein, editora Cultrix - capítulo I da primeira parte)

2 " Assim Como
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.

Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença."

Poemas completos de Albero Caieiro – Fernando Pessoa

3 "Nem tudo que escrevo resulta em algo acabado, é mais uma tentativa , o que também é uma realização porque nem tudo eu quero pegar."

Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

Imenso

13/12/2007

Ontem, como há muito não fazia, li uma revista durante um dia chuvoso. E ainda que durante o estágio “desserviço” que faço, foi um dia agradável, sem lá muitas estórias pra contar, como a maioria das coisas estranhas dos últimos meses. Enfim, deu-me vontade de escrever após a última semana de palavras não lidas e construções quaisquer, ao menos tive animo de brincar novamente. Para ser mais preciso, a vontade só veio depois do desconforto diante de uma matéria polêmica. Isto me fez voltar algumas páginas a outro texto que surpreendera. Achei que, relendo-o, deixaria a controvérsia do texto que acabara de ler um pouco de lado e ficaria mais com a poesia do primeiro. Já simpatizei logo com a maneira pela qual o autor se identificava, era engraçada pra mim: Fulano de Tal “é o Outro, um cara igual a você. Idiota e solitário. Coisas de Poeta”.

E lá vinha ele falando de solidão, do nascimento à morte. Dizia ser a “foice afiada” uma chatice, com destaque para aquela que acontece em vida, permitida e autorizada. Já que, de qualquer forma, naturalmente, todos morremos, ninguém escapa. O ataque era contra a morte cotidiana, de todos nós, a solidão. Ele se perguntava se custaria algo ir ao encontro do outro, abrir a porta, essas coisas singelas. A resposta logo aparecia positivamente, é sim muito caro. Seria preferível nos enclausurarmos em nossa cabeça, citando Fernando Pessoa. Um sadismo que faz com que expulsemos de nosso universo esse Outro, voltando-nos apenas para nossos próprios pensamentos. Algo que poderia ser explicado, pois, no fim das contas, Ele não me entende, não compreende nem abraça. Desse modo, os meus problemas são, apenas e tão somente, aquilo que o pronome possessivo já indica.

O poeta conclui pela “estupidez” humana: um ser vivo que rejeita a Vida. Contrapõe-se, querendo abrir a alma, deixar sair o coração, entregando-se a braços e corpos estranhos, sem distribuir identidades inimigas pelos quatro cantos. A solidão é a morte. Uma responsabilidade pessoal, sobre a qual se deveria tomar as rédeas e não esperar pela ação desse tal de Outro. *

Há quase um ano fiquei entre “Outros”, quem sabe, em um assentamento rural no sul do estado. Foram cerca de quinze dias como membro de uma outra família. Lá, tinha dois irmãozinhos que me salvavam. A Bia lembrava muito o Dito, irmão mais velho do Miguilim, daquele mineiro do mundo todo. Ela sabia coisas inimagináveis, canções e histórias que gostaria de ter gravado para agora, por exemplo, nesse “ambiente” de trabalho, ficar escutando e fugir. Do Gú – ou como ele se apresentava imperiosamente: Luís Gustavo Siqueira Santos!!! – não tinha como escapar “ô, brinca cumigu”. Ela, quase pré-adolescente, já escorregava no mundo dos grandes, como a mãe, que já o dominava bem. Apesar de nova, Márcia era tão velha... Gú não, ia fazer quatro anos, o negócio dele era o “tratorzão” do pai. Este, doloridamente, me causava um aperto fabiano, Graciliano Ramos não imagina a aridez silenciosa de sua obra.

A maioria dos dias caminhava pela agrovila, crianças havia por toda parte e a convivência com algumas delas rende pano pra manga que não acaba. Um dia o Gú me acompanhou no andar. Enquanto nos divertíamos, ora a pular, ora a enfiar o pé nas poças de lama e espirrar barro pros lados, chamava-o pra perto, vinha um carro, um trator, uma carroça ou qualquer outro veículo. Raramente ele segurava minha mão, dizia para o soltar, mas eu apenas pedia pra que ele tomasse cuidado com os veículos, e logo ele saía. “Nossa como ele é independente, né? Bem resolvido, autônomo, maduro... e tão novinho!!!” Pois é... quando retornávamos pra casa, coloquei minha mão sobre a cabeça dele e a balança brincando. Já meio cansados, diminuímos o ritmo e o balanço virou carinho, afago. Ele deixou encostar a cabeça e ficou quieto alguns instantes, junto de mim. De repente, pulou a frente dizendo para o largar. E eu nem o estava segurando. Chegamos em casa.

A gente só se dá conta de muitas coisas bem depois, principalmente, daquelas que de maneira equivocada fizemos. Aqui, vivo atropelando, perco grandes oportunidades de permanecer calado, distribuo mancadas, até mesmo brincando faço besteiras. Lá, espero não ter feito nada de muito desastroso, procurei sempre respeitar a tal da “não intervenção”, mesmo sabendo que só a presença ali já era uma alteração, de alguma forma. Não ia ficar dizendo “puxa mãe, você nunca diz um bom dia para as suas crianças, não tem um gesto de acolhimento, uma palavra doce, a não ser gritos e ameaças”. Porém, Márcia comentou numa confraternização entre aqueles que estavam na mesma situação que eu, estagiário, juntamente com e as respectivas famílias de cada um deles, na qual meus irmãozinhos tiveram que ficar em casa, que eu parecia não ter tido infância enquanto me escondia no piquesconde.

De trouxe o Gú, já que aqui - a oposição entre o e o aqui não é das melhores, ainda que possa ajudar a compreender, vivendo as coisas se misturam - o (re)encontro de várias maneiras. Arredio, mas só aparentemente.

Platão e a tal da dialética socrática, sua concepção de universo e vida talvez dêem algum rumo pra falar, enfim, de amizade. Sem entrar no mérito da procura pela verdade transcendental, a dialética é antes de tudo uma conversa desinteressada, uma troca de palavras qualquer entre duas ou mais pessoas por meio da linguagem. Ela coloca sempre enunciador e ouvinte, reciprocamente. É um desprendimento de si, uma vez que o “amor de si próprio”, conforme o platonismo, seria o maior defeito do homem. Mesmo assim, essa troca não é de “és” (por mais paradoxal que seja a construção dessa oração), não há nenhum tipo de morte de conhecimento, ninguém solapa a palavra do outro por uma sobreposição de verdade. A dualidade, a oposição não estabelece um enfrentamento, ou ainda uma procura mútua de uma terceira verdade a ser enunciada e seguida. A concepção de Platão preocupa-se com o meio do caminho. O Sócrates platônico busca a verdade, mas só pode vê-la, e quer, acima de tudo, vivê-la. Aparece então o Amor como um desejo, uma loucura por esse outro, seu amado. Amor que é um desejo pela beleza das Almas, associadas aos deuses e à verdade. Ele é solícito tal como o deus a que serve, Eros, filho da carência e da impetuosidade, oscilando entre estes.

Não falta gente pra dizer que amizade é uma coisa e amor é outra, ancorados naquele velho truísmo altissonante: “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Sou apaixonado, de formas diferentes, por cada um de meus amigos. Só que, nesse momento, sempre surge alguém com uma moldura, uma grade, ou melhor, uma jaula mesmo pra aprisionar a vida e os significados dela. Entra em cena um verdadeiro glamour cientificista, quando não biologicista. Pra mim, “necessidade” é muito perigoso, desde psicanálises de botequim, passando por sociologias de taverna, até medicinas de qualquer coisa. Se quiserem chamar assim não dêem ares totalitários ao termo. Pois entre seres humanos, talvez, ainda resista uma tal humanidade, e com ela algo que se chama de vontade. Quem sabe o viés racional universalista – e pessimista, que aparece diante do uso do termo irrefreadamente, ou que é apenas um estorvo pessoal - me incomode um pouco, esse olhar sem poesia para o mundo e os seres humanos. Nada como um bom poeta: “eu ainda acredito no ser humano”, dizia Carlos Drummond de Andrade.

Espero ainda que tenhamos razões que a Razão desconheça. E que análise nenhuma, psicanalítica ou farmacológica, por mais que procure, não consiga dar nomes a essas razões nos inconscientes pela Razão. Melhor dizendo, espero que a vida tenha razões que essa Razão específica desconheça. Nomes são palavras, estabelecem finitudes no mundo, um monte de “és”, que não mais serão apenas “sendo” e nunca mais poderão “ser outra coisa”, pois já “são”. As palavras e uma tal de Razão historicamente marcada deixam o mundo quase sem transformação. E criticar determinada Razão que aparece, às vezes, sorrateiramente, pelo uso da precisão ou da necessidade não é ser irascível. Dizer esses “és” faz um “ah, então, pronto, faze o quê, né?”.

Essa tal necessidade, ainda que compartilhada aqui e acolá, pode oprimir outros. Ela parece não respeitar as vontades diferentes, as temporalidades de cada um. Não adianta insistir com essa racionalidade sociologista sobre as relações interpessoais, a gente só sofre. Contra o individualismo moderno, a necessidade pode só reforçá-lo, sendo nada além do que a sua expressão, paradoxalmente. A Vida tem vontades frente às necessidades. O humanismo político acaba então atropelando humanidades. Se a necessidade grita, não custa lembrar que a vontade também pode silenciar. E isso ainda diz muita coisa, porque silêncio é linguagem da mesma forma, apenas comunica significados de maneira peculiar. O mesmo acontece quando não sabemos, mas simplesmente choramos, os significados persistem. Há um problema, distinguir esse silêncio de indiferença, ou alheamento. Talvez, o que alguns chamam de “tempo” possa resolver. A introspecção também se confunde com alheamento, enfim, parece sempre confuso. O jeito é ir com cuidado, prestando atenção, quem sabe, assim, não atropelemos tanto uns aos outros. O clamor da necessidade pode inibir a vontade, no fim das contas.

O divertido da amizade não é o que se diz, mas a maneira como cada um diz. Não posso ser tão hipócrita, nos preocupamos, claro, com o que dissemos todos. O que coloco aqui também é um monte de “és” sobre algo, não deixa de anunciar verdades. Só não quero que não sejam ordens, constrangimentos, ou coisas do gênero. Pelo que digo aqui e acolá e os outros por aí, de vez em quando, não precisa ser sempre também, a gente amarra, vai aos poucos por esse mundo, construindo significados e rindo a fora.

Mais “és”: amizade não é favor, nem cobrança. Com essa vida bancária, só falta a gente pedir extrato pros amigos agora, todos os por quês, pior que aquelas “tias” ciumentas. Amizade respeita, tem paciência, espera, não mistura pressa com gentileza. Ela silencia e até mente, possivelmente. Embora, não seja dessas mentiras contrapostas À Verdade, são apenas aquelas pequenas mentirinhas, ou mentiras sinceras, pra não esquecer do Cazuza, colocadas frente a umas verdades mesquinhas e inconvenientes. Afinal, tem verdades que destroem ilusões, e mesmo que necessitem, às vezes, serem ditas para simplesmente (re)construir novas ilusões, em outros momentos não custa nada serem aquietadas. Não há como saber essa temporalidade que vai se desenhando. A vida já é complicada demais para viver, saber suas exatidões então... melhor assim, a gente aprende, erra, vai vivendo.

Calma lá, me dá faniquito, pavor, coceira, ansiedade, sufocamento, delírio, tudo do pior de ruim com o tipo de amizade-de-trabalho que encaro. Isto tem a maior atrocidade que é possível cometer, quando se associa essa mentira à falsidade, numa espécie de barganha. Um ganho de favor esperado, uma ampliação de QI tecendo uma rede de aparências. Um cinismo gritante (de fazer gritar “pára tudo”), desses que parece se fazerem conscientemente – vivo torcendo pra ser inconsciente – num jogo, de fato, manipulação mal disfarçada. Planejando relações de poder, umas palavras aqui, outras ali, ainda outras acolá, o teatro da vida burguesa então perde qualquer poesia e enlouquece de uma maneira diferente, sei lá como, todavia, não chega nem perto do maluquismo amoroso.

Confesso, desejar esse outro é complicado, exageramos, perdemos a medida, enlouquecemos, sufocamos mutuamente. Aquela loucura pelo amigo, ou amado, tanto faz, transforma-se numa chatice. Por isso, talvez, eu viva pedindo desculpas para as pessoas que gosto. Até mesmo no jeito de brincar acabo, desajeitadamente, atropelando, enlouqueço e peço desculpas de novo. No mais recente atropelo ainda nem fiz isso, pra não ser mais chato novamente.

É, já rodopiei bastante, e me parece que os fragmentos dispostos podem se contradizer. Não consigo concluir. Ironicamente, não vejo necessidade de concluir também, só tenho algumas vontades.

Espero continuar encontrando o Gú, deixá-lo com o meu caderno e os tratores dele desenhados. Exercitar a tal da dialética socrática, sem aquela pretensão universalista de verdade “pra fora”, ficar então contemplando a beleza das Almas. Não dizem que os olhos são as janelas? Encontrar assim o olhar no acaso desejado, que gera uma ansiedade enorme. Quem sabe também, sair da solidão e da morte do dia-a-dia, como queria o poeta. Por mais que, ultimamente, sinta que precise ficar sozinho e, por conseqüência, deixar as pessoas mais sossegadas. Sonhar, com expectativa de que o guarda-chuva fique de lado e que a água do viver enfim molhe, como queria Hanna Arendt.

Nesse instante, transparece o vício de um academicozinho de merda, não escapo das citações, e termino com uma de um jornal. Nem sempre gosto dos textos dele, mas este me impressionou bastante, Contardo Calligaris: “Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa (...) a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal”. E como isso é difícil...

HUGO CIAVATTA



* O Poeta é Ulisses Tavares, na Caros Amigos de novembro.

...

"Agora só espero a despalavra:
a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar
o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo."

Manoel de Barros
("16" em "Retrato do Artista
Quando Coisa", 1998)

A DESPALAVRA! À DESPALAVRA!

"Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu" (A paixão segundo GH).