Eu...queria tanto encontrar
Uma pessoa como eu
A quem eu possa confessar
alguma coisa sobre mim
(“Eu” – Pato Fu)
Existe representatividade?
O que me representa no mundo?
Os programas de Tv, as revistas e jornais mostram o que eu quero ver , ler?
As propagandas trazem o que eu quero consumir?
Os nossos governantes nos representam?
Minha família, cidade e país de origem representam o que eu sou?
O que me representa no mundo?
Eu me represento? Ou apenas represento, cada dia hora e segundo, um papel diferente no tempo?
A palavra representa a coisa?
Já se sabe que não, pois o pai da ciência da língua1 faz tempo que assinalou a distância entre a palavra e a sua referência concreta.
Será então que as palavras representam nossos pensamentos e sentimentos?
Também não, pois como disse Pessoa2 "Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade."
Se cultura é linguagem e a linguagem é falha, por que insistimos então na cultura?
Talvez seja porque a cultura seja a expressão da visão que o homem tem do mundo, e assim, como toda visão é parcial, a linguagem filha desta, também o será.
E estamos, desde que nos tornamos humanidade, tentando alargar sempre esta visão.
Pois esta visão, esta cultura, esta linguagem não traz o todo do mundo, mas traz uma parte.
Parte esta que é real a partir do momento que é a visão de um homem.
Mas o homem não se contenta em ter essa visão sozinho.
Se se contenta é chamado de louco.
O homem quer que outros homens compartilhem essa visão.
Quando um homem tenta impor sua visão a outros homens ele é chamado de tirano.
Quando um homem tenta convencer da sua visão, outros homens, ele é chamado de filósofo.
Quando um homem tenta fazer sentir sua visão em outros homens ele é chamado de poeta.
E se o homem quer tanto que outros homens tenham sua visão deve ser porque ele precisa.
Se ele precisa então o homem deve ser mesmo um ser gregário.
O homem necessita sim de outros homens, mas não quaisquer homens, semelhantes.
O homem necessita se juntar a seus semelhantes.
E os semelhantes são aqueles que compartilham da mesma visão.
Resgata-se aqui a cultura.
Redime-se aqui a linguagem.
Será que é possível juntar várias visões de vários homens num mesmo espaço?
Afinal, isso é o que entendemos por democracia.
Há espaços geográficos que são divididos por diferentes homens.
Mas será que há espaços compartilhados por diferentes homens?
E se há espaços compartilhados por diferentes homens, há espaços para todas as vozes de suas visões?
É possível haver uma voz que se divida contendo todas as vozes?
Uma voz de todas as visões? Como uma boca para vários olhos?
É uma pena não estarmos mais na época dos manifestos, eles eram bonitos porque acreditavam ser a verdade, lindos nessa sua mentira sincera.
O que deveria era haver um espaço para todas as verdades.
O problema de criar um espaço é que se deixa de fora todo o resto.
Sabemos disso, mas não seria ótimo tentar, sonhar em abarcar num mesmo espaço todos os tipos homens?
Se este fosse um manifesto ele seria um manifesto antropocêntrico e antropofágico também, é claro, que não se deve andar para trás.
Mas antropocêntrico no sentido atual da antropologia, o qual as comunidades humanas e os homens não são piores ou melhores entre si, apenas diferentes.
Mais que isso. A psicanálise também já provou que esta história de Eu é construção. O Eu não é único é refeito a cada momento.
Então deveríamos ter um espaço para todos os Eus , os Eus que é você, os Eus que é ela, os Eus que é ele e todos os meus Eus.
Interação entre diferentes versões de uma pessoa e entre pessoas de diferentes versões.
Não é essa a função da liguagem?
Escrever e ser...
Ler e sentir não é função máxima da poesia?
Ler e ser afetado não é função máxima da prosa?
Ler e ser atingido não é função máxima da escrita?
Ler, ser atingido, ser afetado, sentir, mudar minha postura em relação ao mundo e o mundo – não é função máxima da comunicação?
Sim, a mudança, não por causa de um eu que quer mas de um nós que necessita.
Sim mudar, mas como consequência e não causa da escrita.
Ninguém escreve pra mudar, escreve por necessidade.
E, de novo, se a necessidade de um for a necessidade de muitos, muitos mudam a realidade para que esta abarque suas necessidades.
Por isso é preciso que os homens falem entre si quais necessidades têm.
É por isso que se escreve.
Não há realmente encontro entre homens, mas tentativas.
Esse espaço que aqui se apresenta é uma tentativa, mais uma tentativa... mas, como disse Clarice Lispector3, toda tentativa também é uma realização.
MELISSA CRUZ
1 As aulas de Ferdinand de Saussure foram reunidas por seus alunos e publicadas, em 1916, no livro Curso de Lingüística Geral (Cours de Linguistique Générale), livro esse que é considerado o fundador da lingüística moderna. Dentre seus ensinamentos Saussure assinala a arbitrariedade do signo , ou seja, sendo signo lingüístico = significante + significado ou, simplificando, signo = imagem acústica (som) + conceito, vê-se que não há nenhuma correlação entre o som e o sentido (entre significante e significado). Em suas palavras " (..) a idéia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à seqüência de m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf ("boi") tem por segnificante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs), do outro." ( na tradução de José Paulo Paes, Antônio Chelini e Izidoro Blikstein, editora Cultrix - capítulo I da primeira parte)
2 " Assim Como
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença."
Poemas completos de Albero Caieiro – Fernando Pessoa
3 "Nem tudo que escrevo resulta em algo acabado, é mais uma tentativa , o que também é uma realização porque nem tudo eu quero pegar."
Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
Nenhum comentário:
Postar um comentário