segunda-feira, 17 de março de 2008

Representatividade

Eu...queria tanto encontrar
Uma pessoa como eu
A quem eu possa confessar
alguma coisa sobre mim

(“Eu” – Pato Fu)

Existe representatividade?

O que me representa no mundo?

Os programas de Tv, as revistas e jornais mostram o que eu quero ver , ler?

As propagandas trazem o que eu quero consumir?

Os nossos governantes nos representam?

Minha família, cidade e país de origem representam o que eu sou?

O que me representa no mundo?

Eu me represento? Ou apenas represento, cada dia hora e segundo, um papel diferente no tempo?

A palavra representa a coisa?

Já se sabe que não, pois o pai da ciência da língua1 faz tempo que assinalou a distância entre a palavra e a sua referência concreta.

Será então que as palavras representam nossos pensamentos e sentimentos?

Também não, pois como disse Pessoa2 "Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade."

Se cultura é linguagem e a linguagem é falha, por que insistimos então na cultura?

Talvez seja porque a cultura seja a expressão da visão que o homem tem do mundo, e assim, como toda visão é parcial, a linguagem filha desta, também o será.

E estamos, desde que nos tornamos humanidade, tentando alargar sempre esta visão.

Pois esta visão, esta cultura, esta linguagem não traz o todo do mundo, mas traz uma parte.

Parte esta que é real a partir do momento que é a visão de um homem.

Mas o homem não se contenta em ter essa visão sozinho.

Se se contenta é chamado de louco.

O homem quer que outros homens compartilhem essa visão.

Quando um homem tenta impor sua visão a outros homens ele é chamado de tirano.

Quando um homem tenta convencer da sua visão, outros homens, ele é chamado de filósofo.

Quando um homem tenta fazer sentir sua visão em outros homens ele é chamado de poeta.

E se o homem quer tanto que outros homens tenham sua visão deve ser porque ele precisa.

Se ele precisa então o homem deve ser mesmo um ser gregário.

O homem necessita sim de outros homens, mas não quaisquer homens, semelhantes.

O homem necessita se juntar a seus semelhantes.

E os semelhantes são aqueles que compartilham da mesma visão.

Resgata-se aqui a cultura.

Redime-se aqui a linguagem.

Será que é possível juntar várias visões de vários homens num mesmo espaço?

Afinal, isso é o que entendemos por democracia.

Há espaços geográficos que são divididos por diferentes homens.

Mas será que há espaços compartilhados por diferentes homens?

E se há espaços compartilhados por diferentes homens, há espaços para todas as vozes de suas visões?

É possível haver uma voz que se divida contendo todas as vozes?

Uma voz de todas as visões? Como uma boca para vários olhos?

É uma pena não estarmos mais na época dos manifestos, eles eram bonitos porque acreditavam ser a verdade, lindos nessa sua mentira sincera.

O que deveria era haver um espaço para todas as verdades.

O problema de criar um espaço é que se deixa de fora todo o resto.

Sabemos disso, mas não seria ótimo tentar, sonhar em abarcar num mesmo espaço todos os tipos homens?

Se este fosse um manifesto ele seria um manifesto antropocêntrico e antropofágico também, é claro, que não se deve andar para trás.

Mas antropocêntrico no sentido atual da antropologia, o qual as comunidades humanas e os homens não são piores ou melhores entre si, apenas diferentes.

Mais que isso. A psicanálise também já provou que esta história de Eu é construção. O Eu não é único é refeito a cada momento.

Então deveríamos ter um espaço para todos os Eus , os Eus que é você, os Eus que é ela, os Eus que é ele e todos os meus Eus.

Interação entre diferentes versões de uma pessoa e entre pessoas de diferentes versões.

Não é essa a função da liguagem?

Escrever e ser...

Ler e sentir não é função máxima da poesia?

Ler e ser afetado não é função máxima da prosa?

Ler e ser atingido não é função máxima da escrita?

Ler, ser atingido, ser afetado, sentir, mudar minha postura em relação ao mundo e o mundo – não é função máxima da comunicação?

Sim, a mudança, não por causa de um eu que quer mas de um nós que necessita.

Sim mudar, mas como consequência e não causa da escrita.

Ninguém escreve pra mudar, escreve por necessidade.

E, de novo, se a necessidade de um for a necessidade de muitos, muitos mudam a realidade para que esta abarque suas necessidades.

Por isso é preciso que os homens falem entre si quais necessidades têm.

É por isso que se escreve.

Não há realmente encontro entre homens, mas tentativas.

Esse espaço que aqui se apresenta é uma tentativa, mais uma tentativa... mas, como disse Clarice Lispector3, toda tentativa também é uma realização.



MELISSA CRUZ




1 As aulas de Ferdinand de Saussure foram reunidas por seus alunos e publicadas, em 1916, no livro Curso de Lingüística Geral (Cours de Linguistique Générale), livro esse que é considerado o fundador da lingüística moderna. Dentre seus ensinamentos Saussure assinala a arbitrariedade do signo , ou seja, sendo signo lingüístico = significante + significado ou, simplificando, signo = imagem acústica (som) + conceito, vê-se que não há nenhuma correlação entre o som e o sentido (entre significante e significado). Em suas palavras " (..) a idéia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à seqüência de m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf ("boi") tem por segnificante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs), do outro." ( na tradução de José Paulo Paes, Antônio Chelini e Izidoro Blikstein, editora Cultrix - capítulo I da primeira parte)

2 " Assim Como
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.

Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença."

Poemas completos de Albero Caieiro – Fernando Pessoa

3 "Nem tudo que escrevo resulta em algo acabado, é mais uma tentativa , o que também é uma realização porque nem tudo eu quero pegar."

Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

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